terça-feira, 28 de abril de 2009

Coisas

Há coisas que só vêm com o tempo. Uma infinidade delas.
Pequenos detalhes e pormenores que se infiltram suavemente, diariamente, pelas frestas invisíveis do quotidiano. À medida que vão aparecendo instalam-se por períodos indefinidos e variáveis, traçando linhas e ritmos, desenhando o redor.
De todas, as minhas favoritas são os sons e os cheiros.
Os primeiros interagem directamente com as minhas emoções, gradando a pulsação, acelerando ou suavizando o meu tempo interno. Reajo a contragosto mas nada posso face à evidência do seu poder absoluto e, enfim rendida, deixo-me levar pelas suas ondas.
Os segundos modelam-me a pele e despertam-me o corpo. Desbaratam-me numa infusão de sensações vívidas, reacções bestiais de sangue e seiva, induzindo-me a aceitar a minha forma primária.

domingo, 26 de abril de 2009

H

A Helena olhou para mim hoje, com aqueles olhos muito redondos e azuis, e ao mesmo tempo que se entretinha com a sua “torradinha do domingo” perguntou: - Mãe, estou grande, não estou?
Está grande, gigante. Cresce na sua e na minha vida a uma velocidade impressionante. Puxa-me pela mão e mostra-me o mundo cheio de cores, sons e formas. Não me canso de olhá-la a definir-se, a conquistar-se, a construir-se.
Aprendo com ela todos os dias a imensa quantidade de coisas que esqueci só pelo facto de as ter como certas. Revejo-as através daquele olhar sem artifícios e fico cheia de vontade de sorrir.
E de crescer eu também, aprender, viver. Ficar grande ao seu lado neste incrível mundo que é o nosso.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Pausa

Parem as palavras! Sussurradas, gritadas ou mudas. Repetidas, repisadas ou engolidas. Sintaxes, verbos e preposições.
Parem os pensamentos! Giratórios, persecutórios ou irracionais. Úteis, fundamentados ou culposos. Ideias, planos e sinais.
Parem as acções! Imediatas, extemporâneas ou sedentas. Manipulações, desagravos ou apelos. Necessidades, elementos e o real.

Faça-se calma e silêncio. O meu coração quer cantar…

domingo, 19 de abril de 2009

A porta ao lado

A porta ao lado é a que abrimos quando as outras se fecham.
Esteve sempre ali, discreta e paciente, deixando-se escolher sem pressas. Junto a ela podemos deixar os molhos pesados de chaves, o estojo de primeiros socorros, as malas carregadas de artifícios inúteis. O peso das costas e a culpa do mundo são para ficar cá fora.
A porta ao lado é aquela pela qual nunca procurámos.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Vontades

Quero comer e só acho migalhas. Quero dormir e a cama está fria. Quero um abraço e há dois braços a menos. Quero palavras e o telefone não toca. Quero o sol e a chuva não deixa. Quero-me rir mas não acho a alegria. Quero queimar mas não tenho coragem. Quero a paz mas deitaram-na fora. Quero sair mas o corpo é pesado. Quero entrar mas fecharam-me a porta. Quero lutar mas o medo é mais forte. Quero esquecer e o coração não apaga.

Margem

Desci e fiquei na margem.

Debaixo dos pés o chão é frio, húmido e estável. Dois passos para a frente, a força da corrente risca o inevitável destino da foz. Dois passos para trás, a terra firme desenha o contorno de caminhos repisados.
Aqui não há tempo nem espaço. Repousam saciados restos de outras viagens, gozando a paz do limite fronteiriço. No meio deles sinto que pertenço, aproveito o limbo das horas e respiro pausadamente.
Não, por agora não me peçam nada para além da justa forma. Não quero nem preciso de visões ou de rumos. Basta-me apenas a canção do silêncio no eco da cor.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

É preciso provar?

Eu sou toda, toda doce, cheia de macia pressa.
O calor dos corpos derrete-me em ponto de rebuçado. Quando amoleço fico lisa e transparente, dissolvo-me devagar, deixando um travo de mel nas vidas com que me cruzo. Vezes há que me disperso em grãos desorganizados, que dão trabalho a juntar e a ver a forma final.

Sou doce de sangue e pele, de carícias e atenção. Vivo e nutro e torno ao centro, que eu nasci macia e doce, sem pedir e sem razão.

Estilhaços

Abri portas de vidro para deixar entrar o sol. O vento soprou forte e partiu-as.
O que viu a luz já não pode esquecer nem parar. Saem de mim rios de todas as águas, torrentes de lava e pingos de lama.
O que está fora não pode conter-me, grito para longe as pedras do caminho.
Tontura e vórtice, a vida apura-se quando afiada. Rasguem-me o espaço que me tolhe o corpo, metros e metros de linhas que cortam.
Sou mil feras enjauladas que explodirão num salto, areia nocturna na maré salgada.
A paz pelas armas?
O amanhã dirá.

O Príncipe e a Princesa, era uma vez

Mataram o meu amor quando dormia sossegado, sonhando dias compridos, cheios de quentes ternuras. Mataram o meu amor quando brincava sem horas, pisando poças de chuva, riso brilhante, arco-íris. Mataram o meu amor quando ele cantava o sol, estendendo os braços fininhos à procura do abraço. Mataram o meu amor quando ele crescia forte, lindo e doce a aprender os caminhos desta vida.
... e sem deixar de acreditar que para ele existia todo o tempo do mundo…

terça-feira, 7 de abril de 2009

Dessincronia

Os relógios ralham com os meus ritmos.
Os cinco sentidos mantêm-se alerta, o sexto alerta-me: "Sentiste?"
Não quero isso. O corpo pede-me sono e sossego. A cabeça duela com o tempo.
Dividida, balanço e ajusto, pondero e reúno.
Esgotada, no teu colo adormeço...

domingo, 5 de abril de 2009

Noite

Gostava de conseguir organizar os meus álbuns de fotografias tão bem como o faz a minha mente. Dentro dela as pessoas mantém-se com um brilho peculiar, que nenhum photoshop consegue. Quando as encontro e as cruzo com as imagens da minha memória dou por mim com o espanto de quem olha espectros. Abraço-as ou toco-as e fico com a sensação vívida de que as atravessei para o outro lado.

sábado, 4 de abril de 2009

Calma

À minha volta multiplicam-se braços, carinhos e afectos. Vêm de longe ter comigo trazendo-me palavras, conforto, comida. Sempre estiveram ali. Mesmo quando voluntariamente enchi os meus olhos de lágrimas e cinzas e recusei ver.

Pude perder-me de mim e voltar, reconhecer o que de mim ficou. Porque vivo, cheia de brilho e de espanto, no reflexo dos seus olhos!

Pressa

De repente começaram a cair coisas. No início consegui contorná-las, saltar-lhes por cima, evitá-las, até que o amontoado se tornou tão poderoso que me obrigou a parar.

Parada sinto um formigueiro em todo o corpo, os músculos presos ao hábito do movimento constante, a cabeça em vortex ciclónico. Há que recomeçar o percurso, retomar o ritmo, tenho tanta pressa!...

Procuro pontos de referência, placas com direcções, caminhos desenhados ou escondidos, mas não reconheço o que me rodeia. Numa superfície espelhada contemplo-me com susto e não me revejo naquela imagem desgrenhada e afogueada. De quem é a roupa que trago vestida? E o que é que aconteceu à minha cara?

Percebo de repente que corro tanto que já me esqueci onde comecei e para onde vou...